No Limiar da Escuridão

 

No Limiar da Escuridão
No Limiar da Escuridão


 O

 ano era 2199, no primeiro dia do mês de junho, quando o frio se insinuava pelas terras distantes do Norte, uma região selvagem onde apenas os mais fortes sobreviviam, a força de um homem do norte equivalia a cinco dos homens de outros reinos. Mas essa força e resistência não eram meras casualidades; eram justificadas. Os habitantes dessas terras ásperas enfrentavam um ambiente implacável, onde o inverno poderia durar anos a fio. A escassez de comida era uma ameaça constante, e a sobrevivência dependia da habilidade de plantar e colher mesmo sob o domínio gélido do inverno. Nesses ermos, alguns lugares procuram manter plantações em cavernas aquecidas por águas termais. Espelhos estrategicamente posicionados redirecionavam os raios de sol para aquecer o solo e sustentar a vida. Mas além das cavernas, uma barreira colossal se erguia: uma cadeia de montanhas tão vasta que a travessia parecia impossível. Foi então que os anões, há eras, atenderam um pedido urgente. O primeiro e maior rei dos homens desta era, cujo nome se perdeu nas brumas do tempo, pediu aos grandes anões que fizeram a construção de um túnel monumental. Os anões atenderam o pedido e escavaram profundamente nas entranhas da terra, martelando e cinzelando, até que a rocha cedesse. O túnel se estendia como uma veia pulsante pelas montanhas, conectando os reinos, a travessia das montanhas era uma epopeia que desafiava a própria vida. Por cima, uma jornada se estende por três a cinco meses, um caminho implacável onde a maioria sucumbia. Aqueles que se aventuravam enfrentavam ventos cortantes, avalanches traiçoeiras e o frio que penetrava os ossos. A morte rondava cada passo. Mas havia uma alternativa, uma rota que se estendia além da visão dos homens. O mar, no entanto, era traiçoeiro. A parte conhecida como "Engorda Navios" afundara embarcações incontáveis. Aqueles que se aventuravam pelas águas incertas arriscavam suas vidas. E então, como um presente dos deuses, surgiu uma grande passagem. Um túnel escavado nas entradas da montanha pelos anões, cujas mãos habilidosas moldaram a rocha como se fossem artes divinas. O túnel não era apenas uma passagem; era uma promessa de segurança e velocidade. Em uma semana, os viajantes cruzaram a grande montanha, por cima, levariam meses. Mas os anões não pararam por aí. Como tributo ao grande rei, ergueram duas fortalezas nos extremos do túnel. Essas fortalezas não eram meras defesas, mas algo tão grande que poderia ser usado como uma cidade em si. Seus salões se estendem pelas entradas da montanha, podendo abrigar todo o reino do norte inteiro em tempos de crises. Ali, forjavam-se armas de guerra e treinavam soldados incansavelmente. A cidade-fortaleza era inexpugnável, um bastião contra qualquer invasor. A maior parte das forças militares de todos os senhores se instalou lá para poderem se tornarem grandes soldados, logo se transformando em guerreiros formidáveis. O que acabou de tornar um dos lugares mais seguros de,era o coração da segurança do reino, uma fortaleza intransponível. Para ameaçar o reino, um inimigo teria que enfrentar a grandiosa cidade fortaleza. Mas além dela, ao norte, estendia-se uma paisagem deslumbrante, um cenário que desafiava a imaginação dos forasteiros. Era um lugar gélido, mas de abundância inigualável. Seus terrenos, divididos entre os senhores, abrigavam gigantescos castelos e terrenos muito produtivos, mas nenhum deles rivalizava com a alegria da coroa, a capital, uma pequena cadeia montanhas se estendiam, solitárias, em cima das montanhas havia um grande castelo, tão grande que os castelos de todos os senhores pareciam pequenas casas de brinquedo, suas torres batiam as nuvens as tocando como se entrelaçassem, a pedra que compunha o castelo era negra como ébano e tão resistente que armas de cerco não derrubaram sua estrutura, seus muros eram tão altos e fortificados que era quase impossível de invadir, e das montanhas águas quentes fluíam pelo castelo, desaguando em uma grande catarata, que se estendia banhando a cidade e as vilas ao redor, e por mais longe que a água fosse ela continuava quente, o suficiente para abrigar vida, um quente e acolhedor, peixes e moluscos nadavam entre eles, a única época do ano em que as águas se esfriavam era nos anos de inverno e mesmo assim no inverno se o gelo fosse quebrado água por baixo do gelo mostrou todo o seu calor. Ao redor do grandioso castelo, estendia-se a verdadeira alegria do reino. Seus bairros bem organizados abrigavam casas com chaminés imponentes, algumas construídas de troncos de pinheiro, outras de pedra e tijolo. Nas noites frias, o calor emanado das lareiras mantinha os habitantes quentes, desafiando os invernos rigorosos que podiam durar por anos. Os mercados da cidade eram vastos, tão vastos que um dia inteiro não bastaria para explorar todas as lojas. Muros altos protegiam e guardavam a cidade contra qualquer ameaça. Contudo, ao sair dos esconderijos da cidade, um pouco mais afastados da realidade, encontrávamos as aldeias que cercavam a capital. Nessas aldeias, as casas eram engenhosamente construídas para enfrentar o inverno. Algumas delas, metade enterradas na terra, forneciam calor aos seus habitantes. Com um segundo andar acima do solo, a entrada direta para o subsolo, não se deve imaginar, porém, que por serem subterrâneos, eram lugares sujos ou úmidos. Muito pelo contrário, eram aconchegantes e limpos. contendo em seus telhados uma camada de musgo cobria os tetos os deixando mais afrescos em tempos de calor, e ali residiam os camponeses e lavradores. Os riachos de águas cristalinas serpenteavam pelo campo, e altos bosques de pinheiros se estendiam até o horizonte. No verão, a paz reinava, e os campos dourados de trigo se estendiam como um mar. Mas essa tranquilidade não duraria muito. A hora de colher as plantações se aproximava, e todos, jovens e velhos, se preparavam para a tarefa. Uma festa celebrava o evento, com bebida e comida à vontade,mas todos sabiam que o inverno se aproximava. Os mais velhos sussurravam sobre os ventos gelados que logo soprariam, e cada pessoa fazia a sua parte, contribuindo para a sobrevivência do reino. Nos campos dourados, onde o trigo ondulava como um mar de ouro, os idosos desempenhavam um papel vital. Suas mãos já enrugadas e ossos cansados ​​não suportavam mais as tarefas pesadas, mas suas mentes afiadas eram um tesouro para a comunidade. Eles organizavam os jovens, designando-lhes tarefas e transmitindo sabedoria acumulada ao longo de décadas, entre os jovens, destacava-se Karl Black, um rapaz de força incomum para sua idade. Sua pele morena contrastava com a maioria dos habitantes, cuja tez era mais clara. O cabelo negro caiu em mechas rebeldes sobre sua testa suada. Karl usava um chapéu adornado com uma pena de falcão, símbolo de bravura e destemor. Hoje, ele arrastou um fardo de feno, os músculos tensos sob a camisa suja. Os outros trabalhadores, igualmente exaustos, o alertaram: o ancião desejava falar com ele. Karl limpou as mãos no tecido áspero das calças e trilha em direção à tenda do moderno. Lá, sob o abrigo de um tecido gasto, o velho aguardava. Seus olhos eram poços profundos de experiência, e sua voz, embora frágil, também carregava firmeza. Entregando a Karl um pequeno envelope, ele falou:

— Aqui, meu jovem, o pagamento do mês, incluindo o adicional pelas aulas de seu irmão.

Karl agradeceu em nome de ambos. Ele era responsável por ensinar as crianças das aldeias a ler e escrever, além de outras habilidades essenciais. O velho, cansado, sentou-se, o peso da idade se fazendo sentir em seu corpo. Com um olhar sério, ele questionou:

— Então, você ainda pretende partir nessa jornada?

— Sim, meus planos permanecem inalterados — respondeu Karl. O velho retirou um grande cachimbo do bolso, acendeu-o e soltou vários anéis de fumaça no ar. Com uma voz séria, ele continuou:

— Entendo. Devo alertá-lo de que, como você não estará aqui, não poderei cumprir o restante do contrato que fizemos. Sua força não estará disponível para nós, então não pagarei o restante do contrato. Você compreende, não é mesmo? — Enquanto observava os anéis de fumaça com fascinação, Karl desejava ter um cachimbo de qualidade. Os que ele tentava fazer por conta própria sempre acabavam pegando fogo ou não funcionando corretamente. O velho chamou seu nome:

— Ei garoto, Karl, ainda está aí?

— Sim, senhor Marston. Estava apenas perdido em pensamentos. Não se preocupe, entendo perfeitamente os motivos. E, caso tudo corra bem em minha aventura, o dinheiro deixará de ser um problema. — O ancião percebeu a confiança do garoto e balançou a cabeça em aprovação. Estendendo a mão em sua direção, mostrou-lhe seu velho cachimbo, feito de madeira de pinheiro:

— Pegue, garoto. Experimente um pouco da velha Calêndula, vai clarear seus pensamentos. — Karl levou o cachimbo aos lábios com entusiasmo, puxou a fumaça, mas na hora de soltar, não conseguiu evitar uma forte tosse. Seu rosto ficou vermelho, e o feitor soltou uma alta gargalhada. Havia muito tempo desde a última vez que rira assim:

— Com o tempo, você pegará o jeito, meu garoto. Agora vá, leve isso consigo.

— Para mim, feitor, não posso aceitar.

— Pegue logo, moleque. É a única coisa que posso lhe dar, além de desejar boa sorte. — Feliz com o presente, Karl o guardou no bolso e se despediu do velho, caminhando de volta para casa. Atravessando a ponte sobre o rio, Karl seguia seu caminho. As águas eram cristalinas, e o leito do rio, composto por pedras, facilitava a visão dos peixes que nadavam abaixo. Ele caminhava lentamente, assobiando uma melodia enquanto tentava acender seu novo presente. Por mais que se esforçasse, não conseguia acender o cachimbo ou fazer o fogo pegar. Seu precioso tabaco parecia escapar-lhe das mãos. "Acho que não sou capaz de fazer algo tão simples", pensou ele, soltando uma nuvem de fumaça pelo cachimbo. Karl havia sido contratado pelo feitor para trabalhar na vila vizinha, a apenas alguns minutos de caminhada. Enquanto admirava os montes e colinas verdejantes, onde o sol dançava entre as folhas e o ar exalava o aroma de ervas e flores, ele encontrava sua paz no campo. No entanto, sua tranquilidade foi interrompida por uma voz chamando seu nome. Ela ecoava ao longe, repetindo-se insistentemente. Karl olhou ao redor, procurando a origem dessa voz. Quando viu algo correndo em sua direção e avistou Lira, uma jovem lady que havia se mudado para a capital para ser educada como uma dama. No entanto, seu instinto selvagem e sua personalidade forte não puderam ser contidos. Lira possuía uma pele brilhante, cabelos castanhos claros ondulados e olhos verdes como esmeraldas. Apesar de sua estatura diminuta, ela adorava se aventurar pelos campos verdejantes, desafiando as regras impostas pela grande cidade capital. Com um olhar altivo, Lira corria em direção a Karl, carregando algo envolto em panos nos braços. Ao longe, mais três indivíduos a perseguiam incansavelmente enquanto ela tentava escapar. Karl rapidamente jogou a erva para fora de seu cachimbo e o guardou no bolso. Observando ao redor, avistou uma pequena porteira que levava em direção ao velho Bosque de Prata. Sem hesitar, saltou por ela e a abriu para que Lira passasse, fechando-a rapidamente após sua passagem. O impacto fez com que Mirmi, Naira e Noam batessem contra a porteira, fazendo-os cair no chão. Levantaram-se prontamente, resmungando, e continuaram a perseguição a pé. Enquanto corriam, Lira e Karl adentraram o bosque. Seus perseguidores não desistiam, mantendo-se implacáveis. Karl percebeu um pequeno barranco e, com agilidade, arrastou Lira, escondendo-os ali. Após perderem o rastro, os perseguidores desistiram e retornaram à estrada. Lira suspirou aliviada e agradeceu a Karl.

— Obrigada, Karl. Não imaginei que aqueles idiotas seriam tão rápidos. Sinto que estou te devendo uma — disse ela, olhando-o com um sorriso. Karl respondeu:

— Acho que você me deve mais do que apenas isso.

Por precaução, continuaram a caminhar juntos pelo bosque, até chegarem a uma simples cabana que Karl havia construído em segredo. Ao avistarem a pequena cabana à distância, correram incansavelmente até que suas energias se esvaíssem por completo. Finalmente, pararam na porta e puxaram uma mesa de tábuas para o lado de fora. Lira desembrulhou o pacote que carregava, e um delicioso aroma de torta de frango recém-assada encheu o ar, provocando uma sensação de salivação em suas bocas, como um cão diante de um suculento pedaço de carne. Karl também se sentou, e ambos começaram a se servir, desfrutando cada pedaço da saborosa iguaria. Após saciarem a fome, deitaram-se para observar o pôr do sol. Foi então que Karl quebrou o silêncio com uma pergunta:

— Por que você estava fugindo deles? — indagou ele, com um pequeno sorriso nos lábios, enquanto contemplava as nuvens. Lira respondeu, também sorrindo e olhando para o horizonte:

— Bem, digamos que quando um rapaz comprou aquilo, eles o tomaram dele. Então, quando eles se distraíram, eu peguei deles.

— Você pegou ou roubou deles? — questionou Karl

— Bem, eu não roubei. Ladrão que rouba ladrão não é exatamente um ladrão, certo? Eu diria que sou uma justiceira, não é? — Retrucou ela com um sorriso travesso nos lábios.

— Se você diz, pequena gatuna. — Respondeu ele, com um leve tom de brincadeira. Os dois continuaram admirando o pôr do sol, deitados no chão coberto por folhas alaranjadas como um tapete. Enquanto ele contemplava serenamente o crepúsculo, Mas a preocupação se abateu sobre Lira comentava sobre o teste dos cavaleiros reais.

— Então, Karl, você realmente pretende participar da seleção para servir o rei? — Perguntou ela, com um tom de curiosidade.

— Claro que sim! Planejo isso há muito tempo, e com a iminência da guerra, seria uma oportunidade única. — Karl respondeu, sorrindo com entusiasmo.

Lira zombou dele, questionando a graça de servir a um rei ausente e insensível, louco e indiferente ao bem-estar do povo. Qual seria o mérito nisso? Karl respondeu prontamente:

— Lira, a nobreza aqui não é apenas herdada; nós, que nascemos sem título, podemos conquistá-la. Eu sou um bastardo. Nunca conheci meu pai e talvez nunca o conheça. Para nós, que somos bastardos, nunca seremos mais do que somos agora. Mas se eu conseguir isso, poderei melhorar minha vida e a de meu irmão. Poderei obter terras, um título, tornar-me um cavaleiro real e, quem sabe, ser digno de você. — Ao ouvir suas palavras, o rosto de Lira corou instantaneamente. Há muito tempo eles se amavam em segredo, até mesmo de si mesmos. Os olhares trocados entre eles eram carregados de sentimentos, enquanto uma mistura de esperança e incerteza pairava no ar. Enquanto o crepúsculo tingia o cenário com tons dourados, eles permaneciam ali, compartilhando sonhos, unidos pelo destino incerto que os aguardava no futuro. Karl aproximou-se lentamente dela, buscando mudar de assunto. Lira então mencionou o aguardado festival de recepção que ocorreria quando retornassem, um dos eventos mais importantes do ano, onde seriam honrados no castelo pelo próprio rei e teriam a oportunidade de criar seus próprios brasões, abandonando o estigma de bastardo e ganhando um nome de honra. Enquanto conversavam, Karl observava Lira atentamente, removendo cuidadosamente as folhas que se entrelaçavam em seus cabelos castanhos ondulados. Seus olhos brilhavam intensamente, e cada movimento de seus lábios era cativante. Ver Lira era como adentrar em um mundo à parte; olhar para ela despertava uma intriga profunda dentro dele. Será que o universo residia acima de suas cabeças, vasto e infinito? Ou será que ele se encontrava refletido naqueles olhos esmeraldinos, cheios de mistério e encanto? Cada vez mais cativado por sua presença, Karl entregava-se à magia desse enigma que parecia envolver cada partícula do seu ser. Em um breve instante de troca de olhares, ambos se aproximaram. A respiração de Lira estava acelerada, seu coração batia tão forte que Karl podia ouvi-lo pulsando. Pouco a pouco, ele se aproximou dela, chegando tão perto que seus lábios quase se tocavam. Não desperdiçando a oportunidade, ele a beijou, envolvendo-a em um longo abraço. Seus dedos roçavam seus cabelos, e o calor de seus corpos parecia incendiar o ar ao redor. Karl encontrava-se em um estado de agitação tão intenso que seus membros tremiam incontrolavelmente. Lira, nervosa e inquieta, afastou-se dele e começou a falar, interrompendo-o:

— Talvez seja prudente partirmos antes que a noite caia. Minha mãe já deve ter notado minha ausência, e provavelmente serei punida por isso. É melhor não a irritar ainda mais — Ela percebeu algo peculiar nele, mas não era o momento apropriado para indagações. Tentando acalmá-la, ele disse:

— Muito bem, que tal uma corrida? É claro, se você for capaz de me acompanhar.

— Acompanhá-lo? Acredito que essa seja a minha fala — ela se levantou, e ambos sacudiram as folhas de suas vestes, lançando um último olhar ao local antes do pôr do sol. Em seguida, regressaram apressadamente para casa. Como de costume, Karl ficou para trás; por mais veloz que fosse, ele não conseguia alcançá-la. Contudo, algo continuava a atormentar sua mente, algo que não conseguia se desvencilhar de seus pensamentos. Ela persistia em ocupar seus devaneios. tão imerso estava nela que Karl não percebeu o tronco caído à sua frente, tropeçando e caindo no chão, coberto de lama. Enquanto tentava limpar-se, seus olhos capturaram um reflexo na poça d'água: uma sombra de forma humana, com olhos vermelhos como sangue. Pela primeira vez, Karl sentiu o sangue gelar em suas veias. Voltando-se em direção à sombra, nada mais encontrou além de corvos e um cheiro peculiar, como se algo tivesse perecido ali. Era o odor do sangue, o odor podre da morte. Ele tentava assimilar tudo aquilo, mas em sua mente nada se encaixava até o momento em que Lira o havia deixado para trás. Erguendo-se, ele correu seguindo suas pegadas. Enquanto corria, uma sombra negra o observava de cima das árvores, uma forma distorcida em que os únicos pontos visíveis eram olhos vermelhos. Essa sombra disforme começou a falar consigo mesma:

— Ainda não...

Após muito esforço, Karl finalmente alcançou Lira, ofegante e exausto. Contudo, uma expressão de triunfo estampada no rosto dela não o agradou. Caminharam juntos sob o brilho das estrelas, enquanto Lira continuava a observá-las incessantemente. No entanto, na mente de Karl, ele não conseguia deixar de pensar no que havia acontecido.

— Lira, peço desculpas pelo que aconteceu. Eu não deveria ter feito aquilo — ele disse com a voz trêmula.

— Karl, está tudo bem. Foi tudo muito rápido, e minha mente ainda está confusa, pois recebi algumas notícias de minha mãe, bom isso não importa agora — ela respondeu.

— Eu entendo. Minha cabeça também está uma confusão. Mas há uma coisa da qual tenho certeza. — Antes que pudesse terminar sua frase, três sombras misteriosas emergiram de trás de uma árvore. Eram Mirmi, Naira e Noam, sujos e cansados, como se tivessem passado a tarde toda procurando por eles no bosque. Não pareciam nada felizes.

— Finalmente achamos vocês dois, seus ratos esguios — afirmou Mirmi, irritado.

— Agora não tem para onde fugir, sua ladra e seu assistente — Karl logo se colocou à frente, e com seu jeito sarcástico retrucou.

— Bem que eu senti o cheiro de algo podre pelo caminho. Não imaginava ser você, mas agora tudo faz sentido — Noam, um dos amigos de Mirmi, falou.

— Silêncio, cão! Só deve falar com alguém superior a você quando lhe for ordenado — Karl cerrou os punhos. Mirmi percebeu isso e um sorriso malicioso tomou conta de seu rosto. Ele sacou sua adaga.

— Ora, se não é o bastardo querendo mostrar sua coragem para essa mestiça impura — Karl perdeu toda a paciência, que nunca foi muita, e avançou lentamente na direção de Mirmi. Lira tentou segurá-lo, mas ele continuou avançando. Ao chegar próximo o suficiente, Mirmi atacou, tentando esfaquear sua barriga. No entanto, Karl segurou seu braço sem mostrar nenhum esforço e desferiu um tapa em seu rosto. Todos ali ficaram em choque: a plebe atacando um nobre puro. Seus amigos logo sacaram suas adagas, e Karl, com a adaga em mãos, assumiu posição de combate. Ele havia recebido treinamento básico, tentado se candidatar para entrar nas fileiras da cidade fortaleza, mas não podia deixar seu irmão, não com a deficiência dele. Era um bom lutador, e ninguém ousava atacar primeiro. Todos esperavam um movimento um do outro. Lira estava tensa e se colocou atrás dele. Com um tom de ironia, Karl provocou:

— Quem diria que vocês três estariam dispostos a se machucar por uma torta, hein? Mas não os julgo. Ela é realmente muito boa, mas não a ponto de matar — Isso arrancou uma forte gargalhada de Lira, mas fez Mirmi franzir a testa até que suas veias saltassem para fora, A tensão no ar era palpável. Os olhos de Mirmi faiscavam de raiva, e seus amigos permaneciam alertas, prontos para agir. Karl, com a adaga em mãos, enfrentava o nobre com uma determinação feroz. Lira, ainda atrás dele, observava a cena com uma mistura de medo e curiosidade.

—— Você, plebeu imundo, não têm ideia, não tem nada a ver com a torta, mas sim com essa mestiça maldita e você — rosnou Mirmi, recuperando-se do tapa.

— A nobreza é superior. Nossos sangues puros nos elevam acima de vocês, ratos imundos, é meu dever como um nobre de sangue puro colocar ela e você nos seus devidos lugares, agora só porque alguns ratos podem ascender a nobreza por suas conquistas acham que podem ser iguais a alguém como eu, mostrarei qual é o seu lugar — Respondeu ele com ódio em sua voz

— Você realmente não entende não é, o poder não pode ser dado, ou só porque você descende de alguém importante, o poder é conquistado, e se acha que pode me colocar no meu lugar, porque você não tenta — Com uma voz desafiadora ele respondeu A tempestade rugia, ecoando os conflitos que se desenrolavam entre eles e o próprio céu. As lâminas brilhantes reluziam na noite, iluminadas pela tocha que Noam segurava com mãos trêmulas. Karl lançou um olhar para Lira e disse:

— Eu imaginava minha morte de uma forma lendária, não morrendo por uma torta — Mesmo nessa situação, ele conseguiu arrancar um sorriso do rosto de Lira, cujos olhos estavam marejados.

— Me perdoe, Karl. Tudo isso é minha culpa — respondeu ela em prantos. Mirmi, que observava a cena, respondeu com um tom de desprezo:

— Que nojo. E pensar que terei que misturar meu sangue puro com o desta mestiça — As palavras "mestiça" e ser chamado de " cão" irritava Karl profundamente, mas ele estava curioso.

— Como assim, se misturarem? — questionou Karl.

— Você não ficou sabendo? A Lady Samira, mãe dela, tem um grande plano... — Mirmi começou a explicar, mas antes que pudesse concluir sua frase, todos ali simplesmente congelaram em pé. Como se tivessem sido lançados em um lago congelado, estavam paralisados, imersos em uma sensação de frio. O céu já não brilhava mais; a lua havia desaparecido por trás das nuvens tempestuosas, e a escuridão prevalecia. Sentiram algo se aproximar, como se estivesse bem atrás deles. Uma mão gélida e esquelética os tocou. Os dois permaneceram lado a lado, imóveis como pedras, olhando fixamente para frente. Mirmi e seu grupo estavam paralisados, olhando para trás dos dois. A expressão de medo e desespero reinava em seus olhos. Lira foi a única que conseguiu se mover e segurou a mão de Karl. Sua mão estava quente como brasas, enquanto a dele estava fria como gelo, quase cadavérica. Vendo-a nesse estado, ele finalmente conseguiu se mexer. Rapidamente, empurrou-a para frente e sacou a adaga em direção à criatura. Ao ver sua verdadeira aparência novamente, seu corpo congelou. Era um espectro, mas esse em especial era conhecido como o Andarilho da Morte, uma lenda contada para crianças obedecerem a seus pais. Agora, porém, se mostrava cruelmente real. Seu corpo alto e esquelético estava envolto em um manto negro esfarrapado, e suas garras afiadas e longas eram muito maiores do que as de um espectro comum.

A trama sombria se desenrolava, e sob aquelas nuvens tempestuosas e a presença do espectro, Karl sentia sua energia drenar. O olhar da criatura sugava toda a esperança. Enfraquecido, ele soltou poucas palavras:

— Corram, seus tolos — ordenou a todos, enquanto tentava ganhar tempo. Mirmi e seu grupo correram gritando bosque adentro. Lira seguiu em direção à vila mais próxima, e Karl fugia com a criatura em seu encalço. Olhando para trás, percebeu que ela já havia se distanciado consideravelmente. Por mais rápido que Karl corresse, a criatura persistia em persegui-lo implacavelmente, ele viu uma grande arvore e tentou despistá-la por cima escalando-a de forma ligeira, pensara ele que a criatura esquelética não conseguiria o acompanhar, mas para a sua surpresa ela era mais rápida do que ele imaginava. Suas mãos esqueléticas agarraram sua perna, e as garras afiadas penetraram sua carne. Com uma reação rápida, Karl a empurrou com a outra perna, jogando-a para longe e prendendo-a entre alguns galhos. A dor se espalhou por seu corpo, mas ele conseguiu mancar e pular, distanciando-se um pouco. No entanto, um grito medonho cortou o silêncio da floresta. Com a fuga improvável, sua melhor opção era se esconder. Observou ao redor e viu uma pequena elevação, um penhasco com um grande carvalho morto. Sob a tempestade, a noite se tornava ainda mais amedrontadora. Ele se esgueirou e se arrastou sob uma abertura no carvalho, escondendo-se sob suas raízes. A chuva mascarava suas pegadas, mas ele percebeu que havia deixado uma trilha de sangue. O medo e o desespero tomaram seu coração, mas não havia tempo para se entregar. Rezou aos novos e antigos deuses, procurando a criatura, mas a chuva atrapalhava sua visão, e a criatura havia desaparecido de vista. Finalmente, ele podia relaxar um pouco, mas seu coração continuava acelerado. Acima dele, a criatura seguia os rastros de sangue. O capuz ocultava seu rosto, tornando quase impossível discernir sua verdadeira forma, mas de longe Karl podia ver a criatura beber de seu sangue enquanto seguia sua trilha. Suas mãos e pés, no entanto, eram visíveis: pele frágil e enrugada, garras compridas como as de um leão. O coração de Karl parecia querer escapar pela boca. A criatura lambia o sangue deixado para trás, mas os rastros cessavam à beira do precipício. Ela agarrou algumas raízes, buscando mais pistas, mas estas desapareciam ali. A criatura uivou de raiva, virou-se e adentrou a floresta. Um suspiro de alívio escapou dos seus lábios finalmente, ele havia escapado. Contudo, devido a um descuido de Karl, uma pedra caiu barranco abaixo, atraindo a atenção da criatura. Lentamente, ela se aproximava dele. Sua única alternativa era saltar pelo barranco, e assim ele tentou fazer antes de ser puxado com violência por uma mão que agarrou seu pescoço, arranhando-o profundamente. De forma implacável, a criatura o jogou para fora de seu esconderijo. Ele foi arremessado com violência, e seu corpo bateu de forma mais violenta ainda contra o chão, ele cambaleando pelo chão enquanto tentava se arrastar. Mas a criatura se colocou sobre ele, atacando-o com suas garras. Cada investida era como uma sentença de morte. Um corte profundo rasgou seu rosto, vinhas de dor se espalhando da lateral até a sobrancelha, e a ponta de sua orelha foi arrancada. Karl lutava para se recompor e ficar de pé, mas a criatura era forte e implacável. Toda vez que ele tentava se levantar, ela o jogava de volta ao chão. Parecia que seu momento final havia chegado. No entanto, ele não poderia morrer de maneira tão miserável, como um cão na vala. Reunindo as últimas reservas de força, Karl conseguiu empurrar o espectro para longe. Ele se recompôs, puxando a adaga. O espectro também se ergueu, com suas garras banhadas em sangue, ela olhava para as próprias mãos, e colocando sua grande língua para fora ela se deleitava com todo o sangue que havia em suas mãos. A cena era de pura agonia e desespero. Karl, ferido, exausto e sangrando, lutava para se recompor com a adaga em mãos. A criatura, com garras banhadas em seu sangue, se erguia diante dele, sua presença era opressora. O ar estava carregado de tensão e medo. Karl sabia que não poderia morrer ali, não daquela maneira sozinho e miserável, Karl não tinha escolha. Ele enfrentaria a criatura até o último suspiro, pois fugir não era mais uma opção. A chuva continuava a cair, lavando o sangue de seu rosto. Com a adaga em mãos, ele se preparou para o confronto final. O destino havia tecido uma trama sombria e horrível para ele, lutando pela própria vida. O espectro avançou, e Karl se manteve firme contra ele. As garras se chocaram com a adaga, faíscas voaram. Cada golpe era uma luta pela sobrevivência. O mundo parecia girar em câmera lenta, a cada golpe parecia que ele estava fazendo um esforço imenso para não ser atingido, por mais forte e habilidoso que ele fosse, não sabia como deveria combatê-lo de forma efetiva, já havia entregado seu destino nas mãos de todos os deuses, e então, com um último esforço, Karl desferiu um golpe certeiro, perfurando o olho do espectro. A criatura berrava de dor, seus gritos ecoando pelos confins sombrios da floresta. Os sons eram tão altos que machucavam os ouvidos de Karl, mas ele não recuou. O cansaço e as feridas eram como correntes que o prendiam, mas a ira que ele sentia naquele momento era mais forte. Com os punhos cerrados, ele reuniu todas as forças que lhe restavam. Um poderoso soco atingiu o abdome da criatura, ele após isso caiu, suas forças haviam se esvaindo completamente, mas seu soco faz a criatura cambalear para longe a lançando no ar. O grande espectro, assassino das lendas, aterrorizava as vastas florestas de Valdorin havia séculos. Suas garras afiadas ceifaram inúmeras vidas, e suas aparições eram contadas em histórias macabras, sussurradas ao redor das fogueiras. Mas agora, ele desabava pelo barranco abaixo, impotente. O galho de uma árvore, como uma lança, o empalou. O espectro se contorceu, seus olhos frios e viz. Que já brilhavam de forma escarlate se apagaram.


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